Aborto
A grande maioria das mulheres tem uma representação negativa do aborto, posiciona-se contra e considera-o como um crime, uma coisa errada e um pecado. No decorrer das entrevistas e das oficinas esta temática foi permeada por silêncios e lágrimas. Apesar das representações acima descritas, pelo menos 30% das mulheres entrevistadas já adotaram esta prática e sentem-se muito mal em relação ao processo que viveram.
As mulheres não percebem o aborto como um direito, e a gravidez indesejada freqüentemente está associada a dificuldades econômicas, desinformação sobre métodos contraceptivos e/ou à dificuldade para negociação de preservativo com o parceiro.
Este quadro resulta, além do sentimento de culpabilidade, em maus tratos e na exposição das mulheres a risco de vida. Os dois exemplos a seguir (um do GIV e outro do Mutirão) ilustram de maneira contundente a realidade:
Foi terrível, porque na minha adolescência eu não sabia sobre sexo, fazia sem saber. Então eu fiquei grávida (...) e não sabia que estava grávida, e ele muito cachorro me levou numa mulher(...)
Então eu fiz um aborto, só que eu já estava de três meses.Foi horrível, é uma coisa que até hoje eu tenho remorso. O outro que eu fiz já foi consciente, deu o atraso, já fiz o teste deu que eu estava, eu não queria e fiz. Mas tudo era mesmo uma falta de experiência de saber como evitar uma gravidez (...) Ele me deixou na mulher, disse pra minha mãe que eu estava na casa de uma amiga dele, aí a mulher pois uma sonda e deixou lá, eu passei a noite lá, no outro dia eu lembro que ela me mandou deitar na cama, puxou a sonda e eu vi aquele sangueiro todo, eu sentia que ele enfiava um negocio em mim, enfiava e puxava. Quando eu levantei para ir no banheiro eu lembro que tinha uma bacia enorme cheia de sangue que tinha saído de mim.
....eu não sabia que estava grávida, porque descia pra mim, e eu estava trabalhando em casa de família recentemente, (estava grávida de gêmeos). E minha barriga crescendo e minha barriga crescendo (....) eu sei que eu fui no médico fiz exame de urina e deu gravidez. (....) Eu falei: estou sem nada aqui dentro de casa, me deram... ele tinha me dado a prestação de uma televisão e eu vendi um colchão lá, a vizinha e peguei a caixinha que as meninas me deram aqui e fiz um aborto (....)
Colocaram uma sonda, arrancou uma e colocou uma... aí eu fui pro hospital. Mas eu apanhei tanto dos médicos (mostrando com a mão o gestodo médico batendo em seu rosto), acorda sua bandida, sua criminosa, aí quase que eu morro e eu fiz esse aborto porque eu trabalhava em cinco casas na época, cada dia uma, e elas me ajudaram muito, davam comida pra os meus filhos (....) e nas casas que eu trabalho são tudo famílias.... tudo é casa de médico, tudo é casa de gente mesmo que eu nem sei como hoje eu analfabeta, estou lá dentro daquelas casas, hoje é que eu dou valor ao meu serviço, que eu sei que é um pessoal tudo.... formado, tudo um pessoal que trabalha aqui e lá fora também.... Então não podia de maneira nenhuma dizer pra esse povo que eu estava com quatro meses de barriga. Talvez se eu tivesse dito, elas tinham me ajudado no aborto, mas como que eu dizia?
(....)tirou pedacinho por pedacinho. Até hoje eu não gosto nem de pensar nisso. Até hoje eu tenho que pagar isso porque uma morte é um crime. Um só não, dois, né? Cada bracinho e perninha que o médico tirava.... (novamente o gesto bater no rosto) ‘acorda sua bandida, sua safada, você tem coragem de fazer uma coisa... você é uma criminosa eu queria te chamar na cadeia’, (....) (depois relata que as patroas descobriram) (....) Mas passou, né? Nenhuma me mandou embora, me socorreram muito bem, pagaram os dezoito dias que eu fiquei no Pronto Socorro, pagaram direitinho e foi isso esse aborto. Além da minha vida ser dura e ser minha.... ainda mais esse aborto pra mim pagar, porque dizem que é uma dívida com Deus, é uma coisa que a gente não termina de pagar nunca. Eu sei que é duro, né.
Esses relatos revelam diferentes fios que se entrelaçam na ocasião do aborto: o desejo de não ter o filho, a impossibilidade de tê-lo, a desinformação, a submissão ao homem, os problemas com o trabalho, a subordinação e supervalorização dos patrões, a baixa auto-estima atrelada à escolaridade e classe social, a influência religiosa. Uma sensação de culpa perpassa os depoimentos, mesmo quando há lampejos de consciência como no primeiro relato.
O que chama a atenção nos dois relatos é que apesar de ser o sujeito que toma a iniciativa de procurar o aborto, a mulher também ocupa o lugar de objeto, de alguém que diante da fragilidade se deixa levar e acaba a mercê de situações que não são felizes para ela.
Evidentemente que a ilegalidade e a preponderância de representações sociais contrárias ao aborto têm um peso importante nestas experiências, mas cabe destacar que em nenhum momento a segunda mulher questionou o procedimento do médico ou disse que ele estava errado ou deveria ter seu CRM5 cassado por falta de ética. Esta mulher acreditava que se jogasse água quente após a relação sexual mataria os espermatozóides e impediria uma gravidez! E ainda apanha do médico!
Guilherme Ferreira
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